Kentaro, o Gato Sorridente

 Traduzido por: Lelis
Equipe Liga Arena
27/02/2012



Sorrisos de Redenção


Toshusai abaixou-se sob a maça quando ela passou, então, cruelmente, empurrou sua katana no peito peludo do nezumi. Ele girou trazendo sua pequena wakizashi e bloqueando habilmente a longa faca curta brandida por outro verme do enxame. Ele se torceu, livrando sua katana do corpo do primeiro nezumi antes mesmo de ele cair, rodopiando num círculo completo, partindo facilmente a rústica do-maru do nezumi, cortando fundo em sua carne. O homem rato silvou, seus olhos amarelos se fecharam e ele caiu de lado, jazendo na sujeira com um gorgolejar abafado.

Toshusai terminou sua volta e parou para inspecionar a bagunça. Ele parou sozinho no centro de uma clareira suja, entre o corpo de sete nezumis caídos. Os mortos jaziam como galhos quebrados entre vários largos blocos de pedra que haviam caído da parede destruída à sua direita. A estrutura, antes a borda de um posto de vigia de Numai, uma esquecida cidade humana no coração do pântano de Takenuma, havia quase colapsado. De ambos os lados das ruínas, os andarilhos sombrios da floresta de bambu surgiram como sombras sobre Toshusai, apesar da luz da lua cheia redonda acima de suas cabeças.

Esses nezumis desonrados jamais cumpririam sua missão. Retalhando-os, Toshusai havia salvado várias vidas essa noite, mas seu ato nobre pouco fez para comover seu coração morto. Ele era um ochimusha, desonrado por uma única escolha numa noite mito tempo atrás, banido por seu daimyo a vagar pelo pântano. Antes a raiva tomava conta dele ao meramente pensar no homem. mas agora nada podia penetrar o torpor que havia se apoderado de sua alma.

Ele olhou para o corpo mais próximo e uma coisa estranha chamou a atenção de seus olhos. Uma flecha com uma pena trespassava o pescoço da criaura. Nesse momento a memória distante de uma emoção acordou nele. Ele não possuia um hankyu. Alguém havia ajudado-o na batalha, alguém com um arco de samurai. Ele encostou-se lentamente no muro, suas armas empunhadas, e olhou fixamente para os arbustos sob as copas de bambus. Não havia sinal do guerreiro que certamente o observava.

Ele farejou o ar, mas o aroma de terra suja e o fedor dos gases do pântano faziam sentir qualquer outro cheiro impossível. Ele fechou os olhos e esperou.


***


A bota direita de Toshusai deslizou em uma raiz e ele quase caiu. Ele habilmente segurou-se em um tronco de um fino bambu. Ele olhou para baixo, para a escura e estreita trilha e então para as formas armaduradas de seus três irmãos samurais, Yoshinobu, Sakoda e Muro, e para a forma vestida de preto de seu sensei, Kentaro. Ele estava aliviado por nenhum deles ter notado sua quase queda. A última coisa que ele queria era parecer desastrado na frente deles. Ele parou por um tempo para maravilhar-se com tudo o que havia acontecido nessa semana, desde que ele havia visto a flecha de Kentaro. Naquele tempo ele era apenas uma pálida sombra dele mesmo, cambalenado pelo pântano como se estivesse em um sonho.

Kentaro havia mudado isso.

Enquanto Toshusai observava. seu mestre sumiu na névoa do pântano. Os outros o seguiram. Encontrando-se repentinamente sozinho, tirando-o de seu deleite. Ele arriscou uma olhada por sobre os ombros e então se apressou atrás deles.

A névoa envolveu-o, pesada. Ela acariciou sua carne com dedos gélidos mas não pode quebrar seu novo senso de propósito. A mortalha de torpor que o havia envolvido por tanto tempo havia se desfeito. Enquanto corria ele se permitiu revisitar as lembranças de sua redenção...


***


Toshusai ouviu a pedra rangendo sobre ele quando era quase tarde demais. Dada a condição da estrutura ele não havia considerado a hipótese de alguém pudesse saltar e empoleirar-se ali. Ele iria pagar por esse erro, talvez com patética sua vida.

Uma sombra negra girou acima de sua cabeça enquanto alguém dava um salto mortal no ar num arco alto. Toshusai reflexivamente agachou-se para lutar.

O homem aterrisou bons doze pés de distância numa pose parecida. Um hankyu preso em seu ombro direito mostrando que ele era o dono da flecha. As lâminas prateadas de sua katana e wakizashi cintilavam até mesmo na quase escuridão. Sua do-maru preta e escarlate apareceu sem nenhuma marca de combate ou sujeira do pântano. Ele não era um mero bushi do pântano.

O estranho parou lá observando, mas não fez qualquer movimento para avançar.

Toshusai interpretou a encarada de seus olhos castanhos como um desafio, mas manteve-se fixo.

O que você quer? Sua voz saiu fraca no ar gelado do pântano. Havia apenas uma coisa que alguém poderia querer dele, sua vida. Toshusai havia matado todos que tentaram tirar sua vida, lutando com sentimentos de vinganças no começo, e depois com fria indiferença.

Você me reconhece? O homem perguntou e depois sorriu como um gato.

Kentaro, Toshusai suspirou o nome. O matador dos desonrados. As habilidades de Kentaro como guerreiro eram lendárias. Ele vagava pela terra asassinando Ochimushas e qualquer outro que ele julgasse indigno de viver. Nenhum homem ou besta o havia derrotado em batalha. Diziam que certa vez ele havia derrotado um poderoso kami do fogo usando apenas suas próprias armas.

Sim. Kentaro cruzou suas lâminas e as curvou como uma, encarando o oponente.

Um sentimento de alívio floresceu em Toshusai. Ele examinou esse sentimento e então o deixou sumir. Se Kentaro tinha vindo oferecer redenção, ele estava dois anos atrasado. Ele posicionou-se. Uma luta mortal contra um oponente honrado, uma luta difícil, poderia restaurar sua honra e o nome de sua família. Estava finalmente terminado. Mas o que antes havia parecido um doce alívio agora tinha sabor de cinzas em sua boca.

Se você conseguir encontrar a vontade, venha até mim e lute. Com o traço de um sorriso nos lábios, Kentaro moveu luas lâminas no ar.

Toshusai não tinha nada a perder. Ele avançou.

Kentaro não fez nenhum movimento para atacar, ao invés disso apenas o observou.

Toshusai circulou-o pela esquerda, relutantemente, diminuindo a distância, e ficou mentalmente surpreso quando o samurai não se virou para mantê-lo sob sua vista quando passou por trás dele. Era verdade que um samurai engajado num único combate jamais poderia atacar o oponente pelas costas, mas um Ochimusha poderia. Toshusai completou seu círculo e parou para fazer contato ocular com o homem.

Kentaro cumprimentou-o como se ele tivesse passado numa espécie de teste e então pulou para a frente, lâminas girando. Ele se moveu tão rapidamente que mesmo estando em posição, isso foi tudo o que Toshusai pode fazer para se aparar o ataque. Aço encontrou aço quando suas lâminas correram uma na outra. No tempo de um suspiro Kentaro, de alguma maneira, pôs as espadas de Tohusai de lado e trouxe a ponta de sua katana até a garganta de Toshusai.

Toshusai congelou e o mundo tornou-se mortalmente silencioso. Ele olhou nos olhos escuros de Kentaro e então ajoelhou-se lentamente. Uma sentimento de calma aceitação tomou conta dele. Estava finalmente acabado.

Eu estou preparado para morrer. Aqui, no fim, sua honra e seu nome seriam restaurados. Uma sensação de tristeza veio do fundo de sua alma nebulosa.

Mas eu não estou preparado para te matar. Kentaro tirou sua lâmina e disse: Você é um ochimusha.

A tristeza de Toshusai se tornou raiva. Por que você quer me negar uma morte honrada?

Não existe honra numa morte sem sentido. Eu não sou seu inimigo. Ele se virou e andou em direção ao buraco no antigo muro.

***

A face de Toshusai ruborizou enquanto ele pensava na facilidade com que Kentaro o havia desarmado. Quando aparentou que Kentaro não tinha a intenção de matá-lo, as sementes de uma raiva que eventualmente trariam Toshusai de volta a si estavam plantadas. Naquele momento ele não tinha entendido os motivos de Kentaro ou o quão esperto o gato sorridente realmente era.

Pegue um pouco. Sentado perto dele, numa tora suja, Yoshinobu, com sua cara severa, lhe oferecia um pedaço de pão.

Toshusai olhou para ele.

Yoshinobu havia sido recrutado por Toshusai antes dele. Ele, como Sakoda e Muro, haviam sido redimidos pelo gato sorridente assim como Toshusai. Isso havia criado um sentimento de irmandade entre eles.

Toshusai agradeceu com um aceno de cabeça e olhou para os outros. Cinco homens não pareciam o suficiente para dar conta de um oni, apesar dos rumores sobre as habilidades de seu mestre. Todos em Kamigawa ja haviam escutado histórias de bestas como essa acabando com exércitos inteiros de homens, no entanto, Kentaro estava sentado, pernas cruzadas e olhos fechados, em meditação. Ele não parecia preocupado. Toshusai invejava seu equilíbrio interno.

Uma brisa movia-se a sua volta. Toshusai tossiu quando ela arranhou seus pulmões. Enquanto eles viajavam, o ar crescia horrivelmente, como se estivesse sendo influenciado pela imundície da alma negra do oni.

`Siiiimmmm.`

Toshusai piscou quando ouviu essa voz voz de serpente. Os outros não pareceram perceber.

`Eles não podem me ouvir. Eles são muito fortes. Mas você...`

A mão de Toshusai agarrou a bainha da katana e seus olhos escanearam a floresta ao redor.

`Não, eu não estou ai, mas você me verá em breve. Os outros não poderão te salvar, Toshusai.`

Ele engasgou, seus medos tirando seu fôlego.

Yoshinobu olhou para ele com os olhos estreitos.

Eu estou bem. Toshusai acenou. Ele não pode contar aos outros. Se eles sentissem fraqueza nele, eles não confiariam nele em batalha. Ele deveria manter seu segredo em silêncio. Ele se forçou a respirar longa e profundamente, protegendo-se contra o grande mal presságio que ameaçava puxá-lo para baixo.

`Não vai demorar...`

`Você não me assusta, oni.` Mentiu Toshusai.

O oni não respondeu.

Toshusai forçou a criatura para fora de seus pensamentos e buscou consolo nos eventos do passado...

***

Kentaro esperou por ele no topo de um monte de sujeira, no meio de pequena clareira. Três outros samurais, todos com do-marus marcadas por batalhas e kabutos dentados, estavam parados na borda da floresta à esquerda. Eles estavam com seus braços cuzados e olhavam fixamente para frente.

Toshusai parou, resistindo à vontade de sacar suas armas. Ele não sabia qual era o objetivo de Kentaro, mas humilhá-lo em batalha e negar-lhe a chance de redenção não era o que se esperava de um homem honrado. Apesar de sua ansiedade, Toshusai percebeu uma pequena, porém crescente fagulha de curiosidade.

Venha. Kentaro o chamou com uma mão.

Toshusai entro na clareira com passos largos, observando os outros samurais com sua visão periférica, e parou a vários passos do homem.

Esses homens à sua volta são samurais, Kentaro disse com um balançar de braços. Mas nem sempre foi assim. Eles ja foram como você, ochimusha. Eu ofereço a você a mesma chance que ofereci a eles, a chance de reaver sua honra.

Toshusai olhou para os outros, mas eles permaneceram parados e sem sequer piscar. Enquanto os estudava mais atentamente ele percebeu que suas armaduras de batalha estavam cobertas de lama e sujeira do pântano. Eles, claramente, estavam ali por muito tempo, talvez mais até do que ele. Entretanto agora eles estavam unidos e se tratavam como samurais.

Toshusai voltou sua atenção para Kentaro.

Como? Ele estava certo de que Kentaro falava a verdade, mas havia mais do que apenas isso.

Remova sua armadura e armas e e fique no centro do monte. Kentaro deu passo para trás, revelando uma pequena pedra quadrada. Ele apontou para ela.

Por quê? Toshusai havia vestido sua do-maru por meses sem retirá-la.

Kentaro não disse nada.

Uma pequena parte da alma de Toshusai gritava para ele obedecer, para fazer qualquer coisa para cessar essa caminhada sem sentido e existência desonrada. O resto dele estava indiferente. Ele encolheu e removeu seu daisho e sua do-maru, deixando-os cair no chão. Ele andou para a pedra.

Um pulso de energia passou por seu corpo e ele percebeu que seus pés estavam presos à rocha. Seus braços congelaram em seu torso e ele percebeu que estava completamente paralizado e vulnerável.

Kentaro pegou sua wakisashi.

Se você apenas planejava me matar, por que não o fez antes? Exigiu saber Toshusai. Como ele ousava guiá-lo por uma fina corda de esperança apenas para assassiná-lo.

Eu não te trouxe aqui para te matar.

Então para que? Toshusai parou de se encolher.

Eu te trouxe aqui para ajudá-lo. Kentaro parou. Você só precisa responder uma única pergunta.

Que pergunta?

Por quê você não tem honra?

Toshusai encolerizou-se, mas não estava em posição de fazer nada. A pergunta trouxe uma série de lembranças para sua mente. Uma bola de ira cresceu nele.

Porque eu escolhi minha família ao invés de meu daimyo.

Os olhos de Kentaro tornaram-se negros. Errado. Ele cortou o peito de Toshusai, sua lâmina passou por roupa e carne.

Sangue escorreu pelo ferimento ensopando a túnica verde floresta de Toshusai. Ele encolheu-se.

O que, em nome do sol, você está fazendo? Sua ira passou pela camada protetora de torpor.

Por quê você não tem honra? Kentaro ignorou sua pergunta.

Eu desobedeci o decreto do meu daimyo! Um turbilhão de ira abriu uma fenda na camada de torpor que o havia protegido de sentir alguma coisa por tanto tempo.

Errado. Kentaro cortou novamente, cruzando o ferimento anterior.

Toshusai cerrou seus dentes quando a dor e o desejo de atacar o samurai passaram pela fenda transformando o torpor em emoção bruta.

Por quê você não tem honra?

Eu violei o caminho do samurai! A fenda se alargou quando a raiva rasgou por ela.

Errado. Kentaro cravou a lâmina em seu lado.

Toshusai chorou e a camada protetora se estilhaçou completamente. O torpor se foi e a raiva que ele sentia pelos atos de Kentaro queimaram nele, esquentando suas veias. Ele estalou seus olhos quando as lágrimas de ódio e auto-desprezo inundaram-os. Sua alma clamava por vingança.

As primeiras gotas de seu sangue chegaram ao solo, fazendo a terra tremer. Isso o fez balançar e com certeza teria caído, não fosse a mágica segurando ele no lugar. O monte começava a colapsar, puxando Toshusai para baixo e agora envolvendo suas pernas. Sua raiva tornou-se pânico enquanto ele lutava para não ser engolido por inteiro.

O solo já havia atingido seus joelhos.

Kentaro acenou desagradavelmente.

O que você fez? O peito de Toshusai estava apertado, dificultando a respiração. Você vai pagar por esta traição.

Seu sangue despertou a fome do pântano. Os olhos de Kentaro o desafiavam.

Você me trouxe aqui como um sacrifício! Toshusai se imaginou enforcando o Gato Sorridente com as mãos nuas.

Por quê você não tem honra?

Você me pergunta por que eu não tenho honra, no entanto me ofere para o coração negro do pântano. Ele rugiu.

O sorriso de Kentaro tornou-se uma careta. Eu apenas fiz a pergunta. É você que está se entregando para o pântano.

Suor caiu nos olhos de Toshusai enquano ele tentava lutar contra os laços invisíveis que o prendiam. Era inútil. Ele não podia quebrar o feitiço. Sua salvação, se existia, estava na resposta correta à traiçoeira pergunta de Kentaro. E o tempo estava correndo. A sujeira agora estava na metade de sua coxa. Ele balançou com esforço enquanto se focava nas chamas vermelhas em sua mente e ponderava sobre sua desonra.

Por quê você não tem honra?

Por que meu daimyo a tirou de mim injustamente, assim como você busca tirar de mim a minha chance de redenção! Sua alma demandava uma maneira de fazer Kentaro pagar por esse crime.

A face de Kentaro se anuviou. Errado. Ele o cortou de novo, dessa vez abrindo uma ferida em seu lado esquerdo.

Sangue escorreu de seu novo ferimento, pingando no monte de sujeira à sua volta. O monte balançou novamente. Toshusai pode sentir sua fome puxando seu pé como se uma grande língua de terra estivesse presa à seu calcanhar. Ele afundou até os ombros. A pressão da sujeira à sua volta fazia com que respirar se tornasse muito difícil.

Seu tempo é curto. Kentaro se ajoelhou.

Eu te disse a verdade. A voz de Toshusai era apenas um sussurro agora.

Mas você não disse a verdade a si mesmo.

O desespero encheu Toshusai. Ele tinha que pensar em uma resposta agora! Ele fechou seus olhos e empurrou o caos para fora de sua mente.

A terra correu para cima de seus ombros. Cada suspiro era quase impossível agora.

Por quê você não tem honra? A tristeza agora tomava conta de Kentaro.

Seu daimyo havia tirado sua honra, reduzindo-o a um Ochimusha por salvar sua família. Eles eram inocentes de qualquer coisa, mas mesmo assim seu daimyo havia pedido suas vidas. Era ele quem não tinha honra.

O solo tocou a borda de sua bochecha.

Por quê você não tem honra?

Toshusai apertou os dentes de frustração. Ele não havia cometido qualquer ato desonrado em sua vida. Não era justo que os caprichos mesquinhos de um homem patético pudessem destruí-lo. Ele abriu seus olhos e encarou Kentaro uma última vez.

Eu sempre tive minha honra! A verdade brilhou nele, iluminando toda a escuridão remanescente que sua angústia havia escondido por tanto tempo e a expurgando dele. Lágrimas rolaram soltas enquanto ele lutava para se libertar, para que pudesse viver novamente.

Kentaro sorriu e endireitou-se.

O solo envolvia a face de Toshusai. Ele inalou e segurou a respiração quando o solo atingiu seu nariz. O que quer quer acontecesse agora, a prisão em que ele estava havia sido destruída. Sua honra não havia sido restaurada, havia sido relembrada. De alguma maneira, o Gato Sorridente sempre soubera disso.

Kentaro pegou sua katana com as duas mãos e enfiou fundo no solo. O monte ressoou e o som de pedra arranhando pedra cortou o silêncio. Kentaro empurrou sua lâmina para baixo até que apenas a bainha ficasse à vista.

O visão de Toshusai sumiu quando a escuridão se fechou à sua volta.

Liberte-o! Kentaro girou sua lâmina.

O solo estremeceu e então arremessou Toshusai para cima com grande força. Ele elevou-se sobre o monte e atingiu o solo com um baque surdo. Ele piscou e percebeu que Kentaro estava parado acima dele, seu sorriso de gato mostrando uma surpresa orgulhosa.

Você está redimido... samurai. Ele ofereceu a mão para ajudar Kentaro a se levantar.

Toshusai arfava buscando ar e apenas quando a escuridão se foi ele percebeu que suas feridas haviam sido completamente curadas. Ele pegou a mão de Kentaro e deixou o homem o erguer. O sorriso de Kentaro era largo.

A face de Toshusai corou à lembrança de seu comportamento anterior.

Eu te devo minha vida. Ele se curvou.

Então eu te ofereço uma maneira de pagar seu débito. Kentaro apontou para os outros samurais. Nós queremos que você se una a nós, se você estiver disposto.

O que eu devo fazer, sensei? Perguntou Toshusai.

O sorriso de Kentaro sumiu, mas ele aceitou que Toshusai usasse esse termo para se referir a ele. Na borda do pântano fica um antigo sacrário para Terashi, o grande kami do sol. Décadas atrás, um poderoso oni matou o hoto que o guardava e amaldiçoou a terra onde ele estava. Sua corrupção e escuridão eram tão grandes que ele puxou o pântano com ele e, consequentemente, Takenuma engoliu as terras à sua volta. Nós vamos empurrar de volta sua mancha negra nessa terra.

***

Toshusai havia prometido sua vida e serviço naquele momento, e em sua marcha de oito dias ele não havia se arrependido disso em nenhum momento. O Gato Sorridente havia dado um novo propósito para sua vida, permitindo que ele vivesse com honra ao invés de morrer com ela. Esses pensamentos ajudaram-no a permanecer firme em sua resolução e a manter seu medo do oni distante.

Já haviam se passado horas desde que os pensamentos do oni o haviam perturbado, mas a sensação palpável de terror deixava claro que a criatura estava mais próxima. Enquanto eles viajavam as árvores se tornavam torcidas e raras, suas folhas pingando como se estivessem sangrando. A lama ficava mais funda e em breve o caminho se tornaria água.

Kentaro ergueu as mãos, fazendo o grupo parar. Ele escutou em silêncio por um momento.

Yoshinobu e Sakoda tomaram suas posições à direita do líder, Muro moveu-se para a esquerda, onde Toshusai rapidamente se juntou a ele.

Estejam preparados. Kentaro disse calmamente.

`Eu estou pronto.` O oni sussurrou nos cantos escuros de sua mente.

Uma risada horrível ecoou pelo pântano.

Os outros samurais pegaram suas armas rapidamente e perscrutaram a floresta sombria.

Toshusai desembainhou seu daisho, aliviado pelos outros também terem escutado a risada.

`Uma morte especial espera por você.` Ele zombou.

`Nossa honra nos guiará para a vitória.` Desafiou Toshusai, mas as dúvidas que o oni havia colocado em sua mente pareciam larvas roendo um caminho para fora de sua cabeça.

Ali. Kentaro empurrou um tronco e apontou.

Toshusai seguiu o olhar de seu mestre.

Um pequeno sacrário de pedra florescia no pântano. Bambu apodrecido havia crescido da água imunda, suas raízes serpenteando pelas janelas e forçando caminho pelas fendas nas paredes. Uma treliça de árvores bloqueava a entrada principal.

O mal desse lugar é espesso. Disse Yoshinobu. Ele piscou por trás de seu kabuto verde.

Muro grunhiu de acordo. Sakoda apenas acenou com a cabeça.

Kentaro olhou para eles e sorriu. Ele estudou a todos, seu olhar caindo por último em Toshusai. Apesar do que estamos prestes a encarar, eu quero que todos saibam que eu estou orgulhoso de lutar ao lado de vocês.

Uma sensação profunda de propósito irradiou por Toshusai, repelindo o opressivo terror que permeava o lugar. Ele estava pronto.

Tudo pronto. O sorriso de Kentaro sumiu. Nós esperamos tempo demais. Ele os chamou.

Sakoda e Muro pegaram seus hankyus e desapareceram nas moitas. Toshusai aprontou suas lâminas.

Kentaro pegou suas armas e ficou ao lado de um arbusto, com os joelhos abaixo da água. Suas botas criavam ondulações que se expandiam até atingir as paredes do sacrário.

Toshusai o seguiu, permanecendo em posição em seu flanco esquerdo enquanto Yoshinobu guardava o direito. A lama invadia suas botas, puxando-os para baixo e dificultando o andar.

Kentaro parou próximo à porta de entrada.

Toshusai respirou profundamente e esperou próximo à ele.

Um grito agudo, como o choro de dúzias de crianças, ecoou pelo pântano. Passou por ele, sacudindo seu centro e congelando-o tão profundamente que Toshusai pensou que logo iria começar a gritar também. De alguma maneira, ele permaneceu em silêncio. Ele não iria deixar o oni o arruinar.

`Você anda como um homem morto.` Ele disse. `Sua morte será a mais dolorosa, Toshusai.`

Toshusai congelou quando o promessa da criatura voltou à sua mente. Ele se encolheu apesar de seu desejo de permanecer atento, e sentiu suas palmas molhadas. Ele apertou ainda mais fortemente suas armas.

Nós alegremente ofereceríamos nossas vidas ao nosso kami! Disse Kentaro. Mas é você quem irá morrer!

Eu vou pintar as paredes do meu sacrário com o seu sangue! Era ódio jogado para cima deles.

A treliça de bambu se contorceu como serpentes e lentamente se partiu para revelar uma escura entrada. De lá, um pesadelo emergiu da escuridão. Sombras agarraram-se a ele quando ele apareceu na entrada elevando-se ante eles numa altura assustadora. Sua face sem pele era osso e dentes pontiagudos. Seus ombros largos eram laceados por músculos e chegavam em cada lado das paredes, enquanto seus longos chifres riscavam o teto enquanto ele avançava. Ele girou seu horrível crânio para trás e para frente, os olhos vazios finalmente pararam em Toshusai. Desses buracos vazios as chamas de uma inteligência assustadora e ódio intenso queimaram diretamente nele.

`Ajude-me, Toshusai. É sua única chance de evitar os horrores que eu planejei para você.`

As pernas de Toshusai ameaçavam desabar. Porque ele o havia escolhido?

Deixe esse lugar! Kentaro entrou em sua postura de combate.

Tirando forças da resolução de Kentaro, Toshusai assumiu uma posição de alerta. O ranger de uma armadura lhe disse que Yoshinobu havia assumido uma posição parecida.

Eu vou me empanturrar com a carne de vocês! O oni lambeu suas presas e gritou furioso, ansioso por estripar todos eles.

Yoshinobu gritou, quebrou a formação e correu em direção à floresta.

Yoshinobu! Kentaro rugiu.

O samurai fugitivo parou abruptamente. Ele não fez nenhum movimento para retornar, mas também nenhum para fugir pelo pântano.

Ele morreria primeiro, os pensamentos do oni atingiram Toshusai. A besta gritou, sua voz estraçalhando o silêncio a sua volta, quando ele se lançou do sacrário. Ele elevou-se sobre eles num suave e poeroso arco.

Não! Toshusai reagiu rapidamente, empurrando sua katana para cima, mas o oni estava muito alto.

Sakoda e Muro moveram-se de seu esconderijo. Arcos em riste. Suas flechas zuniram em direção à seu alvo. Várias das flechas de madeira saltaram fora da pele espessa do oni, uma se enterrou na massiça perna direita da criatura. Um líquido preto e espesso borbulhou da ferida, mas a velocidade do oni não diminuiu. Ele aterrissou em frente a Yoshinobu.

Yoshinobu levantou suas lâminas numa vã tentativa de bloquear, enquanto o oni trouxe seus braços juntos, um de cada lado de seu peito. Uma rachadura apareceu em sua armadura quando ela amassou e suas costelas estalaram. O samurai tossiu, espalhando sangue no peito musculoso do oni e então afundou na água.

A raiva de Toshusai queimava seu interior. Ele se jogou na água em direção ao oni, com a intenção de estripá-lo.

Suas mortes são como um doce néctar. O oni rodopiou em sua direção. `Me ajude a matar o resto, Toshusai.` Sua voz deslizava para sua mente.

Não de ouvidos à ele! Kentaro fez um profundo talho no braço direito do oni, fazendo com que um jato de líquido escuro espirrasse.

Se você me matar. eu morro com minha honra! A fé de Toshusai foi fortalecida pela ferida do oni. Ele o circulou pela direita e apunhalou-o, acertando o bíceps esquerdo da criatura.

Toshusai traiçoeiro! Ele flexionou seu braço e tirou a katana de Toshusai de seu braço. Ele pulou em direção a ele com seu pé com uma garra.

Toshusai se lançou para trás e o pé gigante da criatura voou sobre ele. Ele caiu na água, o óleo líquido invadindo sua boca enquanto ia em direção à superfície. Ele engasgou, se colocou em pé novamente e cuspiu o fluido nojento. Ele limpou a sujeira de seu rosto e piscou para clarear a visão. Quando seus olhos voltaram ao normal ele viu que Sakoda e Muro haviam jogado fora seus hankyus e haviam se unido à guerra. Eles haviam circulado o oni com Kentaro, dançando e cortando com impressionante velocidade.

Agora era sua chance, o oni estava ocupado. Ele procurou na água e viu Yoshinobu flutuando próximo à superfície. Ele saltou e correu na direção de seu camarada, o desespero o empurrando. Ele puxou Yoshinobu para a superfície da água. Seus olhos estavam brancos. Sangue saia de suas costelas, através de suas roupas e armadura. Não havia dúvida de que ele estava morto.

Toshusai pegou a katana de seu amigo e permitiu que ele afundasse. Um ódio honrado explodiu em seu interior, chamuscando-o por dentro. Ele se levantou a tempo de ver Muro voar pelo ar. O samurai atingiu uma árvore com um estalido e escorregou para os arbustos abaixo, fora de visão.

Sem mais medos, sem mais dúvidas. Toshusai apertou a lâmina de Yoshinobu tão apertado que suas mãos doeram.

O oni evitou a katana de Kentaro e deixou de lado a wakizashi de Sakoda. A raiva de Toshusai o propeliu para frente.

O oni acertou Sakoda no ombro. Houve um som de ossos quebrando e o samurai caiu de joelhos. O oni empurrou-o fortemente com seus punhos.

Kentaro empurrou Sakoda para fora do caminho e empurrou sua katana no lado do oni.

Toshusai ficou aliviado ao ver Sakoda tentar sair do campo de batalha.

O oni cambaleou. `Toshusai, você tem que me ajudar!`

`Isso ajuda?` Toshusai pegou sua wakizashi. Ele acertou o peito do oni, empurrando até a bainha.

Kentaro girou sua lâmina.

O oni vomitou um líquido preto, cobrindo-os com seu sangue vil, e então caiu de joelhos.

Pelos mortos honrados! Toshusai arfou e acertou o espesso peito do oni. Sua katana escorregava pelas suas costelas. Um solavanco de energia vil saiu da criatura, trespassando a lâmina e queimando a mão de Toshusai. Ele soltou a arma deu um passo para trás.

O oni olhou para baixo, para ele, com suas órbitas vazias. Ele estremeceu e seus músculos repentinamente murcharam em sua pele. Fendas abriram em seu corpo como se ele fosse feito de pedra, alargando-se numa teia de fissuras que rapidamente cobriu seu corpo. Finalmente, ele foi dividido em vários pedaços, cada um deles caindo na superfície da água e desaparecendo da vista até que nada restou.

Toshusai engasgou e então permaneceu fixo enquanto o peso de seu ódio pela criatura desaparecia e sua dor passava.

O chão estremeceu e um raio de pura luz do sol atravessou o manto de escuridão que pairava sobre o sacrário. Ele ficava mais brilhante a cada segundo. O bambu encolheu e retrocedeu em direção ao coração do pântano, levando água e lama com ele. O calor tomou conta da face de Toshusai, enchendo-o de paz interior enquanto curava suas feridas.

Lentamente, o brilho desapareceu, deixando-os com a luz normal do dia. Quando terminou, o sacrário mantia uma pequena semelhança com a que eles haviam entrado um pouco antes. Ele permanecia no centro de uma larga área de pedras polidas e arredondadas. Toshusai se viu parado entre Kentaro e Sakoda, atrás dele.

Kentaro se virou e sorriu para eles, um por vez, e então lentamente tornou-se solene. Sem nenhuma palavra, os três samurais sabiam que era hora de colocar Yoshinobu e Muro para descansar, e de honrar seu sacrifício. Kentaro moveu-se em direção à suas formas caídas e, sem hesitação, Toshusai o seguiu.




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