Iwamori dos Punhos Abertos

  Traduzido por: João Lelis
12/03/2012
Equipe Liga Arena




Batalhas Pessoais


O punho de Iwamori bateu com violência no carvalho, e a árvore, que havia ficado imóvel por centenas de anos, caiu com um baque ensurdecedor. O orochi renegado nos seus galhos mais altos saltou para uma árvore vizinha segundos antes do chão tremer com o impacto da queda.

`Você está começando a me irritar, monge.` silvou Shisato, veneno pingou de suas presas e formou uma poça verde no chão da floresta.

`Você tem caçado a mim e a meus semelhantes por muito tempo,` veio a estrondosa e vazia resposta. `Eu acho que sou eu quem deveria estar irritado.`

Os olhos de Shisato brilharam nas sombras das folhas farfalhantes. `Você sabe que eu poderia descer ai agora e enchê-lo com meu veneno antes que você pudesse piscar.`

`Você poderia tentar.` O monge era alto e maciço, com um peito que parecia um pedregulho e braços que eram tão grossos quanto o carvalho que jazia à seus pés. Ele estalou seus dedos, com um som que cortou a quietude da silenciosa Jukai. `Eu acho que você poderia perceber que minha pele é mais grossa do que você imagina. Ou, eu poderia simplesmente te pegar no ar e torcer seu pescoço. Você acha que seu pai ficaria terrivelmente desapontado comigo se eu fizesse isso? Eu estaria evitando que ele tivesse que fazer isso ele mesmo.`

O brilho dos olhos do orochi se tornaram duas pequenas bolas de fogo. `Eu sei o que você está tentando fazer, monge. Me forçando a cometer um erro. Bem, não vai funcionar. Eu vou te matar do meu modo, na hora que eu escolher. Eu sugiro que você peça desculpas antes disso.`

As poderosas pernas de Iwamori o fizeram voar em direção à árvore, em direção à voz, mas Shisato havia desaparecido antes que o último silvo de sua voz desaparecesse no ar. Iwamori grunhiu.

`Você não escapará de mim para sempre, renegado. Eu juro, sua pele ainda decorará as paredes do meu quarto.`

  
***

Iwamori curvou-se, lembrando Ansho do pequeno garoto, então cheio de temor e respeito, que havia se juntado à ordem a tantos anos. `Me desculpe, Mestre Ansho.`

`Você não tem motivo pra se desculpar. Você nunca tem. Shisato é um problema, mas ela não é o mais urgente no momento.` A face do velho monge estava enrugada, mas seu corpo ainda comportava muito do poder que ele teve durante sua juventude, ainda robusto e mais musculoso que muitos homens com metade de sua idade. Como um dos mais antigos alunos de Dosan, e um lutador que os atos ainda eram contados em poemas, ele mantinha um olhar de predador em seus deveres administrando as defesas do monastério e de Jukai. `Na verdade, eu questiono o porque de persegui-la, primeiramente.`

O corpo do jovem monge elevou-se, o horror marcado em sua face. `Você acha que eu não deveria deixar o monastério sem um defensor? Você está absolutamente certo, Mestre, e eu me desculpo por...`

Ansho acenou com uma mão murcha. `Acalme-se, jovem. Se eu quisesse dizer isso, eu teria dito diretamente. Mas não é.`

Iwamori ficou em pé, elevando-se acima de seu mentor como Boseiju. `Contudo, minha falha em parar Shisato significa que eu relaxei em meus treinos. Após minhas meditações eu treinarei duro, eu juro.`

`Se tem uma coisa com que eu sempre posso contar, Iwamori, é com seu treinamento.` Ele disse isso com um pequeno sorriso que Iwamori não tinha certeza de como interpretar. `Eu sei que você o fará corretamente.` Ansho parou, seus olhos correndo por seu estudante. `Posso fazer uma pergunta?`

`Claro!`

`Eu gostaria que você se perguntasse qual é o propósito da sua vida e de seu treinamento.`

Iwamori piscou. `Para buscar esclarecimento, e defender Jukai contra todos que desejarem destruí-la, é claro. Essa não é a pergunta que você faz para os novos acólitos, para testar sua força interior?`

`Talvez, mas eu achei que você poderia se beneficiar dela também.` Um momento de silêncio. `Vá agora, vá para seu treino. Eu tenho certeza que iremos conversar mais tarde.` Iwamori curvou-se e deixou a câmara de sue mestre. Ansho balançou a cabeça. `Tantos problemas, aquele jovem...`
 
  

***

Quando Iwamori meditava, parecia que o mundo todo parava apenas para dá-lo paz. Aves cessavam seu canto, folhas recusavam-se a farfalhar, e as gentis brisas que corriam pelas árvores paravam de soprar. Ele achava fácil entrar em seus domínios interiores, onde o mundo de fora deixava de existir, ele não sabia como. Ele sentia que Mestre Ansho estava, de alguma maneira, preocupado com isso, mas ele não tinha idéia do porquê.

Como sempre, quando suas meditações estavam terminadas e seus olhos abertos, ele se achou cheio de uma estranha sensação de desapontamento. Talvez fosse porque ele tivesse falhado em achar uma resposta para a pergunta de Mestre Ansho, outra além da que ele já havia dado? Francamente, ele não estava certo se realmente existia outra resposta.

Iwamori sabia que Mestre Ansho não era o mais erudito dos discípulos de Dosan, haviam muitos que haviam alcançado níveis maiores de esclarecimento dos que o dele. Ele não era o mais forte, alguns haviam sido até mesmo mais fortes que ele, mas não tantos quanto os que eram mais sábios. Mas por alguma razão, todos sabiam o nome dele, até mesmo numa ordem como a de Mestre Dosan, onde as fileiras eram inchadas pelos refugiados da longa Guerra dos Kamis.

Um baixo ruído ecoou pela floresta, enviando o monastério em uma repentina lufada de atividade. Mulheres derrubaram suas trouxas e cessaram seu treinamento. Homens recolheram as crianças e agarraram suas armas. Iwamori, seu sangue fervendo em suas veias, falhou em conter um pequeno sorriso quando começou a correr, apressando-se aos altos portões de madeira, que mantiam o resto de Jukai à distância.

Assim que os portões entraram em sua vista, ele viu os portões cheios de monges, alguns armados com lanças, outros com nada mais que seus punhos. Eles gritavam e gesticulavam e rogavam por ordens. Não havia uma hierarquia oficial entre os monges, eles concediam respeito um ao outro com base no que eles sabiam sobre a habilidade de cada um. Mas quando o sino soava, quando o monastério estava em perigo de ataque, havia apenas um homem em quem eles podiam contar: Iwamori.

`Acalmem-se!` Ele rugiu. O balbuciar finalmente interrompido, o silêncio quebrado apenas pelo contínuo soar do sino de aviso. `Qual é o perigo?`

`Um kami foi visto em Jukai,` um dos monges gritou mais alto do que o necessário.

`Apenas um?` A voz de Iwamori cresceu afiada e irritada. `Eu espero que haja mais do que parece agora, ou eu ficarei muito desapontado com quem quer que tenha tocado o sino de aviso.`

O monge engoliu em seco. Agora, Ansho havia se juntado à multidão, seus ouvidos aguçados. `Não é um problema de número, irmão Iwamori... é um problema de... estatura.`

`É o Kami dos Mortos Honrados!` Um deles gritou. `Korin pode vê-lo até mesmo quando ele estava na extensão oeste! Ele está vindo nessa direção!`

A face de Iwamori agora estava severa. Até mesmo em Jukai haviam chegado histórias sobre Eiyo, um grande kami, maior que a grande maioria, que havia destruído uma legião dos melhores oficiais do daimyo. `Certo.`

`Nós estamos prontos para defender o monastério.` O resto dos monges concordou, suas faces fechadas e suas mãos agarrando suas armas.

`Vocês confiam em mim para fazer a coisa certa?`

`Claro!`

`Ótimo.` Ele olhou para o grupo, uma mistura de feições, alturas, idades e corações. `Então aqui está meu comando: fiquem aqui e defendam este lugar com suas vidas. Eu irei lá fora e tentarei mudar o caminho de Eiyo.`

Um murmúrio correu pelo grupo, Ansho franziu o rosto. `Sozinho?` Um dos monges perguntou.

`Sim, sozinho. Nós vamos precisar de todos os defensores que tivermos se o Kami dos Mortos Honrados chegar até aqui, e outros iriam me atrasar, sendo que velocidade será a essência do que eu vou fazer.` Ele se virou para os outros com um olhar severo. `A menos que vocês duvidem de minhas capacidades.`

Com resmungos e balanços de cabeça, os monges relutantemente debandaram e tomaram posições defensivas. Apenas Ansho ficou no solo, com o rosto ainda franzido. Iwamori se virou para seu mestre. `Não se preocupe. Eu me certificarei de que vocês todos fiquem seguros.`

`E você? Quem te manterá seguro?` Ansho perguntou calmamente.

`Isso importa, se o resto sobreviver?` Ele se virou. `Abram os portões!` Ansho assistiu seu estudante passar sozinho através dos portões do monastério, assistiu até que as portas massiças bateram atrás dele.

`Oh, Iwamori... Eu vejo que você ainda não respondeu à minha pergunta...` Ansho não se moveu para buscar abrigo ou sair de seu lugar. Ele ficou encarando os portões, como se já estivesse esperando pela volta do jovem monge.



***

A floresta estava estranhamente silenciosa, exceto pelos passos do próprio Iwamori que quebravam gravetos e folhas. Isso era um sinal, não haviam aves nem animais, sendo que Jukai deveria estar cheio deles. Até mesmo o kami menor que importunava caçadores e viajantes estava ausente. Eles sabiam o que estava acontecendo, mesmo que demorasse um pouco para os humanos perceberem.

Com três saltos, Iwamori atingiu o topo de uma árvora anciã, e então pode olhar sobre as vastas copas verdes de Jukai. Para o oeste, vindo cambaleando, como se estivesse andando pelas copas, estava a figura metálica com uma armadura que brilhava deslumbrantemente no sol do meio dia. Ele poderia ser confundido com um samurai, se samurais tivessem trinta pés de altura. Garras massiças, feitas por centenas de centenas de katanas, varriam o topo das árvores, cortando galhos e partindo  folhas. De sua cabeça (ou onde uma cabeça deveria estar, se ele fosse humano), um kabuto com feição de ódio. Iwamori não sabia porque Eiyo estava passando por Jukai, e nem se importava com a razão.

`Lorde Kami!` Ele rugiu numa voz que sacudiu os céus. O massiço kami diminuiu a velocidade e virou, o kabuto olhando para ele como se fosse a face de um deus julgador. `Pelo bem de Jukai, eu te desafio para um combate! Enfrente-me, se você não tiver medo de um mero humano!`

Os passos do kami pararam completamente. Ele parou, congelado, encarando o pequeno monge abaixo dele. Um barulho pôde ser ouvido dele, o som de cem mil placas de metal batendo umas nas outras. Mas o som não era baixo, ele aumentava, no ritmo da voz humana. Se era pra ser realmente isso, não funcionava, Iwamori não podia entender nada do que ele estava falando.

Depois do que pareceu serem horas, o Kami dos Mortos Honrados levantou uma de suas massiças mãos e a lançou em direção à Iwamori. Ele saltou para fora do caminho, seu corpo ainda assim atingido pelos ventos formados pelo movimento brusco. Sem pausa, ele pulava de novo e de novo, usando-se como isca para tirar o kami do caminho do monastério. Felizmente, o kami parecia contentar-se em tentar eliminar seu inimigo blasfemador, os helmos vazios que o seguiam brilhavam com uma luz branca de raiva.

Uma poderosa patada tirou Iwamori de uma árvore antes que ele pudesse reagir. Suas mãos falharam em tentar segurar-se num galho, quase fazendo-o cair desconfortavelmente no chão da floresta. Ele olhou para cima e foi imediatamente cegado pela luz branca. A mágica do kami mandou adagas de fogo em seu corpo, e seu aperto afrouxo-se. Ele caiu num monte de galhos, cada um fazendo com que o impacto com o chão fosse suavizado. Iwamori piscou para recuperar a visão a tempo de ver unhas feitas de lanças ensanguentadas cortarem em sua direção.

Ele se atirou para fora do caminho, mas uma das lâminas cortou seu ombro esquerdo. O monge encolheu-se quando se colocou novamente em pé, num galho próximo, seu sangue saindo quente de sua ferida. A máscara de Eiyo brilhou com uma deslumbrante luz que iluminou toda Jukai. Iwamori pulou instintivamente. A explosão errou sua perna por pouco, mas estilhaçou os galhos da árvore, ele percebeu, quando caiu, que não encontraria mais apoios ali. Ele atingiu a copa, sentindo os arranhões de galhos e folhas e gemeu quando ramos quebraram sob seu peso. Ele saltou novamente e agarrou um dos galhos mais espessos que viu, balançou e se lançou para frente, fazendo isso mais duas vezes até chegar, habilmente, ao solo.

`Já chega disso,` ele resmungou sem fôlego. Ignorando a dor em seu ombro, Iwamori se lançou em outra grande árvore, encarando Eiyo novamente nos olhos.

Novamente, garras na forma de lança vieram em sua direção, mas, dessa vez, seu salto de esquiva o levou para cima da armadura sobre os braços do kami. As juntas e músculos do monge doiam enquanto ele subia e pulava pelo braço gigante do kami. Ele olhou para a esquerda, a investida mortal do outro braço ainda não havia terminado. Ele tinha pouco tempo. Pouquíssimo tempo.

Finalmente empoleirado no ombro do kami, Iwamori desceu e agarrou uma das placas de metal massiças que formavam a carapaça corporal de Eiyo. Suor descia por sua face, as veias pulavam de seus braços enquanto seu aperto tensionava o metal. Finalmente, com um rugido bestial, a placa separou-se do corpo. `Não é a mais impressionante das armas, mas parece ser o suficiente.`

Agora, o olhar triste do kami havia se virado para ele, os olhos vazios da máscara kabuto guinchando com indignação. `Eu imagino que você espera que eu reponha esse pedaço de armadura,` resmungou Iwamori. `Tudo bem então. Você terá isso.` Gritando um kiai que ecoava por sua alma desde seus primeiros anos, Iwamori arremessou a placa de bronze. O pedaço de metal bateu na máscara kabuto, que foi estilhaçada pelo rápido projétil.

O kami guinchou, dessa vez muito mais alto, um som doloroso que reverberou no cérebro do monge. Rios de um líquido brilhante floresceram da viseira estilhaçada de Eiyo como se fossem lágrimas. Iwamori rapidamente arrancou outra placa de metal, jogando-a novamente na cabeça do kami. Dessa vez, o pedaço de armadura atingiu o outro lado da face destruída de Eiyo, destruindo um dos helmos que voavam à sua volta. Outro grito irrompeu, e Iwamori pode ver o helmo quebrado dissolver-se em pequenas fagulhas amarelas que choveram pela floresta. Seus dedos agarraram outra placa.

Mas antes que ele pudesse arrancar essa outra, o corpo do kami começou a tremer e balançar. Iwamori sentiu o terreno abaixo dele macio. Em segundos, o kami havia desaparecido inteiramente.

Iwamori desceu novamente, mas dessa vez estava terminado. Ele gemeu enquanto descia, secando o suor de suas sobrancelhas. Quando voltou ao monastério, uivos de agradecimento choveram sobre ele assim que perceberam sua volta. Mestre Ansho ainda estava no mesmo local, onde ele o havia deixado, olhando para Iwamori com olhos avaliadores.

`Uma centena dos melhores homens de Lorde Konda não conseguiram derrotá-lo. Mas você conseguiu!`

`Você nos salvou!`
 


Iwamori balançou a cabeça, sua face severa. `Não, eu falhei. Eu poderia ter salvo o mundo de um kami maior, salvando várias outras vidas inocentes.`

Ansho finalmente falou. `Mas você o machucou, o machucou o suficiente para mandá-lo de volta para o kankuryo, uma coisa que nenhum homem ja havia feito antes, e você ainda fala em ter falhado?`

`Eu não falo isso. Meus atos já gritam isso alto o suficiente.` Sem se atentar aos olhares e à comemoração, Iwamori partiu. Mais tarde, Ansho o encontrou no campo de treino, socando postes de madeira e chutando sacos cheios de folhas até que seu corpo ficasse totalmente exausto.

`Nós temos uma banquete de celebração em honra à você. Você não vai se juntar a nós?`

`Não,` disse com um solitário gemido. E foi isso. Voltou aos chutes, socos e giros. Ansho retirou-se lentamente e retornou para as chamas que rugiam onde todos comemoravam

.

***

A manhã chegou sobre a Floresta de Jukai clara e quente. Mesmo que nenhum dos paparicados e perfumados nobres de Eiganjo tivessem levantado, os monges seguiam o curso da natureza, e já estavam de pé. Haviam treinos a serem feitos, koans a serem escritos, comida a ser plantada e reparos a serem feitos. Eles trabalhavam como formigas, carregando seus pacotes, trastes e problemas por ai, numa atividade constante.

No centro de tudo, como sempre, haviam dois homens parados. Ansho sentou em sua câmara e Iwamori curvou-se ante ele. A face do ancião estava estampada com a preocupação. `Eu não vou tentar te parar. Mas eu preciso que você reconsidere urgentemente.`

`Não.` O massiço monge levantou-se. `Minhas falhas nos últimos dias não deixarão de me perseguir enquanto eu não agir. Eu não retornarei até que Shisato seja, ou um prisioneiro do nosso povo, ou esteja morto em minhas mãos.`

`Você faria isso isso mesmo que isso significasse nos deixar sem nosso mais poderoso defensor?`

`Eu não planejo ficar longe por muito tempo. Mas minhas ações são para o bem de todos, e eu devo passar por isso para que minha honra permaneça intacta.`

`Ah, honra,` suspirou Ansho. `Um conceito tão nobre. Até que os homens do daimyo começaram a morrer desnecessariamente por causa disso.`

`Mestre?`

`Você sempre foi um dos meus estudantes mais frustrados.` Ansho disse isso com um sorriso que não continha nada de malícia. `E tem tanto potencial...`

Iwamori piscou. `Mestre?` Ele repetiu.

`Você achou uma resposta para a pergunta que eu te fiz anteriormente?` Ele perguntou casualmente, feita como se eles tivessem acabado de começar a conversar.

`Pergunta?` A face de Iwamori se contorceu em dúvida por um momento. `Ah, aquela! Não tenho outra fora a que já dei. Por quê você pergunta?`

`Se você tem que perguntar, é porque você não entendeu meus motivos.` Ansho pausou. `Pense nisso em suas viagens, Iwamori. E pense no motivo que te trouxe aqui, para começar.` Então ele fechou seus olhos.

`Porque eu...? O que você...?` Mas a respiração lenta e a quietude do ancião disseram para Iwamori que Ansho não estava mais verdadeiramente presente, pelo menos não de espírito. Ele silenciosamente se pôs de pé e deixou o monastério. Ele não disse adeus a ninguém, não havia ninguém de quem ele gostaria de se despedir. Alguns monges o viram e quiseram questioná-lo, desejá-lo boa sorte, mas não sabiam como fazê-lo. A partida de um dos lutadores mais fortes de toda Jukai, talvez de toda Kamigawa deixou todos sem palavras.



***

Os dedos de Iwamori acariciaram o chão, correndo a borda de uma pegada estampada na lama. Rastreamento nunca foi uma de suas grandes habilidades, Azusa sempre poderia ultrapassar suas escassas habilidades. Mas ele reconhecia o rastro de um orochi quando via um, e esse era relativamente fresco. O passo era o de alguém com pressa, e a direção era a de alguém que estava muito longe da região segura dos orochis. Isso significava Shisato.

Ele seguiu o rastro o melhor que pôde. Quando os rastros sumissem ele achava que poderia seguir sinais aqui e ali de alguém passando: um galho quebrado ou grama amassada. O som de folhas quebrando chamou sua atenção. Alguém estava se mexendo nos arbustos ali perto, e não estava fazendo muita questão de se esconder. Shisato não seria tão descuidado. Ou, talvez, fosse uma armadilha. Essa não era, com certeza, uma região para viajantes casuais... pelo menos não para um sem um motivo obscuro. Iwamori agachou-se ao lado de uma árvore. O som estava cada vez mais próximo, e vinham quase para onde ele estava. Se levantando, Iwamori tomou ar, esperando por mais um passo, então saiu de trás da árvore, trazendo seu punho para frente, num poderoso soco.

Sua investida encontrou apenas ar. O monge piscou, olhando ao redor. Ele não pôde ver ninguém. Mas como? Ele reconhecia passos humanos quando os ouvia, e ele estava tão certo que os passos vinham dali...

`Hmm. Eu acho que aquele kanji foi útil, afinal.` A voz macia veio de trás dele. Iwamori girou e viu um homem alto e magro em vestes negras. Ele estava encostado casualmente em uma árvore, seus braços cruzados e sua boca aberta num pequeno sorriso. `Você nunca sabe quando encontrará com o inesperado. Que é o que o inesperado significa, claro.`

Iwamori apertou os punhos, transformando-os em pedregulhos. `Quem é você?`

`Isso faz diferença? Apenas um viajante pegando um atalho por Jukai.` Uma espada pendia de seu cinto e balançava gentilmente com o vento enquanto o homem olhava Iwamori de cima a baixo. `Você é um dos monges de Dosan, não é? Está um pouco longe de casa, não está? Eu não sabia que o velho homem ensinava seus estudantes a atacar estranhos sem motivo.`

Os sentidos de Iwamori estavam confusos. Alguma coisa não estava certa com esse homem. Sua atitude, sua estatura, sua aura... O que quer que fosse, gritava em erro, como se fosse alguma coisa que fosse sua responsabilidade destruir. `Você é um samurai,` ele continuou. `Mas você não está vestido como um dos homens do daimyo.`

`Isso é porque eu não sou um. E você é...?`

`Alguém que sabe que você não é bom. Você não é bem vindo em Jukai.`




O samurai riu. `E você é o titã eremita, o solitário defensor da floresta? Seus dias de patrulha devem ser certamente violentos.`

`Cale-se e lute comigo!` Iwamori se pôs em posição, seu braço balançando com uma força que poderia quebrar rochas. Seu oponente respondeu com um simples aceno de cabeça e começou a andar com uma graça felina. Ele pegou sua espada, enviando flashes de luz por seus olhos.

`Eu não posso perder tempo duelando com um estranho monge que eu acabei de conhecer. Eu tenho que deixar claro que eu sou um amigo pessoal da filha do daimyo Kond...`

`Fique quieto!` Iwamori gritou novamente, apenas para ver o samurai abaixar-se repentinamente. Um soco, outro, um chute rápido. Tudo era evitado com facilidade.

`Qual é o seu problema?` O samurai calmamente olhou para Iwamori com olhos que cavavam em sua pele, em sua mente, coração e alma. `Temperamento quente, hein? Eu ja vi outros do seu tipo antes. Grande, forte, estupidamente bravo, cheio de honra e dever. Você sabe o que sempre acontece com eles?`

`O que?`

`Eles morrem. O que é o que eles normalmente desejam.` A face do samurai abriu-se num meio sorriso. `Por que você quer morrer, monge?`

Um silêncio mortal percorreu a floresta por um instante, enquanto os dois homens se olhavam nos olhos. Iwamori quebrou o silêncio com um rugido bestial, como o de um animal ferido. Ele avançou para o samurai com os braços abertos, dedos curvados como se estivesse se preparando para apertar e quebrar a garganta do outro homem.

`Acetei um nervo, não acertei?` O samurai evitou a investida de Iwamori com um giro casual. O monge apenas gemeu em resposta, pegando um tronco caído e arremessando-o em direção à seu inimigo. Dois cortes com a espada mandaram o tronco para o chão em pedaços. `Eu acho que sim, você parece ter perdido a capacidade de raciocinar.`

`Eu vou matar...` As palavras eram apenas rosnados. Iwamori pulou para frente, enviando punho atrás de punho em direção à face do samurai, cada um assoviando pelo ar com a força de um martelo de forja. O monge foi atingido por um corte que teria matado imediatamente qualquer homem normal, e aleijado até mesmo kamis menores. Nenhum deles caiu. Nessa hora Iwamori, com as faces avermelhadas, girou, seus dentes cerrados. O samurai estava atrás dele, seus ossos inteiros, sua carne intocada. Com outro grito animalesco, Iwamori atacou, sem sentir os cortes de aviso que o samurai fazia em seu peito. Sua mente meramente registrando que seu oponente estava pegando sua jitte, como se estivesse preparando uma punhalada que Iwamori não poderia evitar. Mas ao invés disso, o samurai pareceu ter mudado de idéia no último momento, simplesmente evitando o ataque impensado de Iwamori.



`Continua com isso? Sabe, eu meio que gostei de você. Você é simples e direto.` O meio sorriso apareceu novamente. O samurai caiu em um joelho e desenhou um kanji na sujeira. Espinhos de pedra irromperam do solo, circulando Iwamori numa jaula de pedra.

Os punhos de Iwamori bateram em sua prisão de pedra. Os espinhos racharam, mas apenas um pouco, não o suficiente para libertá-lo antes que o samurai pudesse fugir. `O que você está esperando?` Ele rugiu. `Termine o que você começou!`

`Eu te venci facilmente, não foi? E, se eu me lembro bem, foi você quem começou.` Ele olhou para o monge com um ar de suave interesse, como se estivesse olhando para um animal exótico num zoológico. `Um pequeno conselho. Você pode continuar com isso ou deixar de lado, não interessa para mim qual você vai escolher. Mas você deve pensar sobre porque você está tão determinado a defender Jukai sozinho.` Com isso, o samurai sumiu em meio às árvores. Foi-se, deixando um jaula de pedra e um monge com os ombros caídos, joelhos fracos e a cabeça tomada de pensamentos.

Uma hora depois, quando Iwamori havia finalmente estilhaçado um dos espirais de pedra, ele ainda estava pensando, pensando em coisas que não haviam entrado em sua cabeça em anos.

Ele acordou com o som de gritos e de passos correndo. Ele piscou para afastar o sono de seus olhos a tempo de ver seu pai entrando em seu quarto. `Iwamori! Você deve correr!`

Ele tinha apenas oito anos de idade, mas até ele sabia o que o terror estampado nos olhos normalmente calmos do pai só podia significar uma coisa. `Eu quero ajudar!`

O monge parou próximo às pedras quebradas. Não havia sinal do samurai ou de qual caminho ele havia tomado. Mesmo que ele soubesse pra onde ele havia ido, ele já tinha uma dianteira muito grande.

Não que fosse ser útil seguí-lo. Ele devia ser demente. Que idéias ridículas!

`Seus irmãos já estão nos dois portões,` veio a curiosamente calma resposta. `Você é necessário na estrada. Ajude sua mãe e sua irmã a escapar para Jukai.`

`Não! Eu quero ficar aqui e lutar com você!`

Iwamori não pensava em Shisato, o orochi havia escapado totalmente de sua cabeça. Ele também não pensava nos giros que seu estômago dava. Ele começou a andar.

Depois disso ele só se lembrava de algumas partes: o braço de seu pai envolto forte em sua cintura, seu grito enquanto ele era carregado no ar frio da noite. Ele lembrou de ter sido praticamente jogado nos braços de sua mãe, e uma pequena luz cintilante que correu pela face de seu pai, um pouco antes de ele se virar e correr de volta para os portões, a lança em suas mãos. A luz das casas queimadas à sua volta dançavam enquanto desapareciam, até serem totalmente engolidas pelas chamas.

Iwamori olhou à sua volta. Ele já estava nos portões do monastério. Lentamente, uma grande mão os alcançou e os abriu. Os monges ainda estavam no meio de seus afazeres diários, assim como estavam quando ele saiu. Nenhum deles se preocupou em olhar enquanto ele passava pelo seu meio, entrando nas câmaras de Ansho.

O mestre esperava por ele, é claro.

Ele percebeu que seus pulmões queimavam e doíam, puxando ar o suficiente para manter suas pequenas pernas se movendo. Então vieram os gritos atrás dele. `Não olhe para trás, Iwamori!` Sua mãe gritou. `Corra!` Estalos, lágrimas, uivos, hálito quente no seu pescoço, passos pesados que assoviavam em seu ouvido e estremeciam seu corpo. Ele podia sentir a lama fria sob seus pés enquanto entrava nos confins de Jukai, ouvir os gritos dos monges que o perseguiam, sentir as farpas de madeira  que entravam em suas mãos enquanto ele batia nas paredes do monastério. Sozinho.

`Bem vindo à sua casa, Iwamori.`

Ele se curvou. `Obrigado.`

`Isso significa que você pensou no que eu te falei?`

`Sim.`

Ansho ergueu uma sobrancelha. `E qual é sua resposta?`

Ele parou, as palavras ainda se formando em sua cabeça. `Eu tenho feito muito pelos monges daqui em nome de minha família. Eu quero... queria... mais do que tudo me juntar à minha família honrando o nome deles e morrendo por uma causa que eu não pude proteger enquanto criança.`

`E agora?`

`E agora... eu não sei mais qual é o meu propósito.`

O ancião acenou com a cabeça. Iwamori se levantou e se virou para sair. `Espere.` O massiço monge se virou. `Não pense que eu não apreciei tudo o que você fez por nós todos esses anos. Mas as batalhas importantes não são lutadas apenas nos vastos campos de batalha. Nem são lutadas meramente para salvar vidas mortais. Medite sobre isso hoje.`

Iwamori acentiu. Ele foi para os campos de meditação, com a intenção de pensar sobre o que havia acontecido hoje.

O treino podia esperar.




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